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O efeito em cima da causa

por Gabriel Cruz Lima
O último romântico - Gabriel Cruz Lima

“Você viu o que o Bolsonaro falou? Sem noção demais esse cara que ele indicou”, foi o que disse Vanessa Rios, via twitter, na noite de sexta-feira,  ao ver a indicação de Jair Messias para a Coordenação de Aperfeiçoamento de Nível Superior (Capes). Vanessa, estudante de moda da Faculdade Belas Artes, foi retuitada por Plínio, Alberto, Marcos e Mariana. O presidente também respondeu ao comentário da estudante.  

“Depois de 13 anos de dominação lulopetista na ciência, finalmente o Brasil se livra dessa mancha em nossa história”, disse Bolsonaro no sábado de manhã, seguido por algumas bandeiras do País.

Algum homem de mais de 50 anos, no instante seguinte, subia uma coluna na Folha de S. Paulo sobre os desmandos raivosos, sobre a inversão de causas e efeitos nas redes sociais, explicando como essa postura presidencial era nociva ao país e atacando a arquitetura das redes. O título reclamava da colostomia verborrágica do twitter, apontando também o absurdo dele diante da exigência do cargo. Luiz Frias, chefão do jornal, disse: aproveitemos o ensejo. Virou capa.

A manchete de domingo vinha com a foto de Vanessa e os dizeres: “A renovação antibolsonarista”. A moça, evangélica convicta, meio que se desencantou aos poucos com a falta de senso do presidente, como ela dizia. A estudante acreditava que ele mudaria o discurso do então candidato, uma vez que, derrotado o inimigo vermelho,apareceria a postura de estadista. Ele mostraria o trabalho prometido. 

“Ele disse que ia melhorar a economia, não ia?” Que seja de subemprego e commoditie, tanto faz, a economia vai bem, afinal, apontou a Folha. 

No decorrer das horas entre o tuíte, o retuíte e a capa do jornal, Vanessa viu suas redes sociais se inundarem de seguidores e sangue. Fiéis que inflavam os números, ora de sacrifício batista, ora de veias abertas. Ficou o sábado inteiro alternando entre o teclado e o celular, espiando as respostas. Até desmarcou de sair com o namorado. 

Betão Deus é Fiel, 42 anos, advogado, disse que ela era uma vagabunda vendida. Fez uma thread no twitter em que elencava os movimentos do Messias em direção ao Império Santo. Pátria, Deus, família, arma, Hilux, Henrique e Juliano, essas coisas do Brasil Império.

Já Josimar dos Santos, 64 anos, aposentado pela Sabesp, foi mais brando e exaltou que esse tipo de lixo tinha que morrer. Muito embora estivesse de luto pela morte de Timbira, seu gato, e nunca tivesse brigado com ninguém durante toda a sua vida. O máximo foi certa vez  mostrar o dedo no trânsito, mas chorou ao contar disso para seus pais. 

Do outro espectro, Ana, 23 anos, professora do ensino médio,  comentou que não era justo o que faziam com aquela mulher e sugeriu que os estudantes da faculdade de Ciências Sociais da UFPR se reunissem em um debate sobre a exploração das redes sociais como canalizadora dos (des)afetos. Assim, com o parêntesis e tudo, para chamar mais atenção.

À margem esquerda temos um forte. Gustavo Lenny, 24 anos, filósofo, fez uma análise semiótica não apenas dessa postagem, mas de todas as redes sociais de Vanessa. Em uma delas ele achou uma foto cuja leitura cheirava a maoísmo. Era Vanessa e mais duas pessoas, todos vestidos como gerente do Santander, segurando a carteira de trabalho. A legenda dizia: “Deus proverá. Aleluia carteira assinada.” Lenny, mistura de Lênin com o rockeiro Kravitz, publicou um textão em que analisava a pujança da classe trabalhadora brasileira como ato de resistência aos desmandos do (des)governo. Assim, com parêntesis e tudo para chamar mais atenção. O PSOL gostou tanto que em menos de 24 horas já se via o cartaz para prefeitura da cidade de Macaé. A Maria Gadú fez o jingle da campanha.

Vanessa relevou os xingamentos, não endossou os apoios e achou gozada a fala de Gustavo. E Fábio ali no Whatsapp reclamando que perdera o cupom para o rodízio de sushi, que eles dois já não eram mais os mesmos e que tudo não passava de um casinho para Vanessa.

Depois de chorar até dormir, Vanessa foi acordada sem sustos por um bom dia solar. Ao chegar à mesa do café se deparou com aquela foto tirada no dia anterior, dois pães, uma maçã e um suco de laranja. Sem sustos, abriu na matéria homônima.

Ao ler aquela peça do jornal, ela foi gradativamente sentindo uma diferença na coloração do aparelho da moça. Apesar de a foto capturar aquilo que era Vanessa Rios, parecia que de certa forma o elástico estava um pouco mais alinhado, bonito. Que aqueles dentes sobravam em brancura retilínea. Achou muito bonita toda a situação dessa tal Vanessa Rios, estilista. 

E ela lia com os olhos faiscando para saber a história dessa mulher. Por que não falavam também  do cabelo californiano? Das unhas coloridas? Segundo consta, foram mais de três horas de salão para se preparar, compromissos desmarcados, e só falam desse tuíte.

Mas tudo bem, que seja. As coisas ali pareciam muito perspicazes. Respostas brutas, dela e de mais algumas que encarnavam essa onda anti-bolsonarista. Ficou com o rosto vermelho ao ler sobre a resposta da economia.  A tal moça apenas dissera pontualmente sobre a melhora nos números, nada demais, apenas constatações de alguém inteligente.

Ao terminar a notícia e o suco, Vanessa recortou aquela foto e deixou de canto. Releu. Viu cada vírgula e sílaba bem pontuada de uma moça super interessante e talvez linda. Não era sobre ela. Não era sobre ninguém. Não tinha substância. Era como se a Folha tivesse se usado dela, de alguém, como método de abrir fogo ao presidente. Mas de fato, ela era tão contra o presidente assim?

Enquanto toma o suco de laranja, ela pesquisa sobre o tal Benedito Guimarães e suas propostas para o ministério. Ministério não, CAPES. Quase tudo a mesma coisa. 

“Queremos colocar um contraponto à Teoria da Evolução”, foi o que mais lhe chamou a atenção. Depois veio a proposta do design inteligente. Não acreditava no que ele dizia propriamente, daí a crítica. Mas desconfiava um pouquinho da ciência.

Na escola quando viu Darwin, também foi o período em que um grupo de estudos bíblicos na Igreja comentou sobre o criacionismo de Adão e Eva, sobre como seria uma possibilidade ler aquilo como uma parábola à arquitetura divina exercida por deus. Apesar de uma ideia bonita, ela tinha outra coisa secular, que, por mais suja que parecesse, fazia  muito mais sentido a teoria de que tínhamos passado, em algum momento, não era essa a palavra, por uma suruba de macacos. 

Além de que, o design inteligente deveria prever seus problemas oculares. Multas de trânsito e enganos gerais teriam sido evitados se esse arquiteto não tivesse feito a cegueira congênita.  Assim, admitir que o defeito vem de fábrica seria também falar que deus estava errado, o que, logicamente, nunca poderia acontecer. Deus é bondade. Se ele me dá óculos de tartaruga, ele tem uma razão que eu desconheço, mas uma razão boa, não um projeto de cegueira proposital.

Ao olhar a biografia de Benedito Guimarães, entretanto, ela se encanta com o feito: reitor da Faculdade Presbiterana Mackenzie. Intelecto deve ser algo louvável,  ótimo para um quadro técnico muito bom! Diferente e melhor do que os anteriores com certeza, que ela não sabia quem era, mas que jurava a incompetência. Diferente, porque óbvio, não estava associado à denúncias de corrupção. Melhor, porque careca e ela gostava de carecas.

Fábio, seu careca, está chamando ao interfone. Ela atende e ele enche de desculpas.

—Me perdoa, não sei onde eu tava com a cabeça.

—Fábio, tudo o que eu queria era parabéns, minha primeira capa de jornal.

—Eu sei, amor, eu sei como essas coisas são importantes para você. Eu que fiquei chateado e acabei descontando por causa do nosso sushi de sexta. Você está linda na foto. Desce aqui um minutinho.

—E inteligente, para você aprender a me elogiar melhor.

Desligou o telefone e mal pegando o celular e o elevador já pensava no abraço de reconciliação. Até ver o buquê. O seu antigo buquê favorito.

A essa altura nos braços de Fábio, que, com aqueles gerânios tentou se desculpar pela rudeza. Ela aceita pela educação, dando um passo atrás do abraço, e olhando o buquê com mais vagar, franze o cenho, sentindo a aspereza do embrulho de papel pinicar na mão. Gostava tanto de tudo. Mas agora era a capa, coisa que não combina com esse vermelho muito simples.  

Perto do que ela poderia ser, aquela do retrato, a estilista realizada e política, Fábio parecia mais careca. Meu deus, a careca excessiva. Os dentes que mal cabem na boca. A sobrancelha longa e desgrenhada. 

Ela pensou novamente no tuíte, na escalada da fama. Se lhe fosse possível continuar, só mais um pouco, para quem sabe, ser presenteada com orquídeas, rosas, um homem cabeludo e tudo o mais que a do retrato merecia.  E que dessa vez aparecesse uma versão mais ela do que a anterior, que aproveitasse a ferocidade da moça de californiana na capa do jornal e combinasse com suas novas opiniões políticas, mais inteligentes, mais perspicazes, mais contra tudo o que está aí. Atirou os gerânios na testa infinita do namorado. 

Enquanto ele pegava as flores do chão, ela remendava seu tuíte. Disse em alto e bom som:
“Sem noção mesmo, deveria ter indicado alguém mais capacitado, alguém que repense como a ciência brasileira está de verdade. De fora dela, para combater ao sistema.”

E não parou:

“Não é sendo preconceituosa, mas presbiterano não é tudo isso. O intelecto de um ex-reitor não é tudo. Poderíamos pensar homens como Valdemiro, Silas.” 

O presidente retuítou Vanessa. Diante das repercussões positivas do comentário da moça, ela mesma foi indicada ao CAPES e seus dois outros aconselhamentos, dos pastores, ficaram com a pasta de agricultura e comunicação. Todo efeito tende a engolir a causa.


Gabriel Cruz Lima é estudante de jornalismo na Faculdade Cásper Líbero e graduando em Letras pela Universidade de São Paulo. É tio da Maria Luiza e escreve contos e crônicas quando os chakras se alinham.

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